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Entrevista de Chico Alencar aborda temas como direitos humanos, segurança pública, caso Natan Donadan e Socialismo

Em entrevista ao Jornal Opção, de Goiânia, o deputado do PSOL, Chico Alencar, disse que a não cassação do deputado Natan Donadon, que cumpre pena no presídio da Papuda, e a aprovação do fim do voto secreto mostram a inconstância por que passa o Congresso.
 
Na ocasião, Chico falou da atual conjuntura do Legislativo após as manifestações de junho, dos rumos tomados pelo PT, partido ao qual foi filiado antes de ir para o PSOL em 2005, da atuação de Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, da truculência da Polícia Militar e do sistema de Segurança Pública no país, do caso Amarildo e do Socialismo, dentre outros assuntos.
 
Confira abaixo a entrevista concedida pelo deputado do PSOL aos jornalistas Elder Dias, Frederico Vitor e Cezar Santos, do Jornal Opção, no dia 6 de setembro, quando esteve na capital goiana.
 
Elder Dias — Como o sr. avalia a preservação do mandato do deputado-presidiário Natan Donadon pelo plenário da Câmara dos Deputados, há poucos dias, em um momento tão crucial da história brasileira, após as manifestações de junho?
É expressiva, para mostrar o padrão degenerado que domina a política institucional brasileira. Contra todas as evidências, contra a indignação popular, contar o sentimento geral do País, a Câmara dos Deputados, protegida pelo manto podre do voto secreto, decidiu que ele (Donadon) pode continuar como deputado. Ou seja, o que a Câmara dos Deputados nos disse é que é compatível praticar crime, ser condenado em última instância e continuar a representar a população.
 
Elder Dias — Então, pode ter sido uma espécie daquilo que na psicanálise se chama de “ato falho”, cometido pela Câmara?
Há algumas razões para se pensar isso. Primeiro, boa parte dos deputados que preservaram o mandato de Donadon pensou em si mesma — “eu posso ser o Donadon amanhã” —, porque sabe das próprias malfeitorias. Segundo, o fato do voto ser secreto permitiu o anonimato. Ninguém na sessão se inscreveu para defendê-lo. E veja que foram 133 dizendo “não”, 41 votando abstenção — que é, na prática, a mesma coisa que votar pela não cassação —, e mais 4 votando obstrução, que tem o mesmo efeito. Isso fora os ausentes. Na soma total, dá 280 deputados, contando também os faltosos — 50 desses os quais estavam lá na Câmara e não foram lá votar —, e os que disseram “não” ou “abstenção” ou “obstrução”. Outra coisa é que esse pessoal também talvez quisesse fustigar o Judiciário. No Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) há dezenas de deputados federais e senadores com inquéritos e processos. Eles vivem falando da judicialização da política, então quiseram dar uma resposta. Só que essa resposta para atingir o Judiciário foi um tiro no pé, um “harakiri” [“suicídio”, em japonês) política. A maior prova disso é que logo depois a Câmara, de novo, de forma surpreendente, na quarta-feira, 4, aprovou o fim do voto secreto em todas as situações, o que era um projeto que nós defendíamos havia muito tempo. O PSOL sempre foi e sempre será a favor do voto aberto dos parlamentares em todas as situações, porque nós estamos em uma função delegada pelo povo, de representação, e o representado tem direito de saber como seu representante vota, sempre. O voto secreto é sagrado para os indivíduos, eleitores, para protegê-los contra os coronéis da política, contra os poderes econômicos, contra os patrões. Mas o voto aberto para o parlamentar é uma obrigação. Então, nos votamos assim sete anos, no dia 5 de setembro de 2006, e votamos assim, da mesma forma, no dia 4 de setembro de 2013. Outros mudaram de posição. Foi impressionante, foi o “efeito Donadon”, por causa da má repercussão dessa abominável decisão da semana anterior. Os 452 deputados presentes votaram a favor do voto aberto em todas as situações. Nenhum contra. Então a Câmara vive um momento de transtorno bipolar: vai para um lado ignóbil num momento e depois, para reparar os danos, vai para o lado oposto. É uma confusão. Mas, vendo pelo lado positivo, é sinal de que o povo, a opinião pública, a pressão das ruas, isso tudo está de alguma maneira ecoando lá dentro.
 
Frederico Vitor — A decisão de preservar Donadon é sinal de que a Câmara Federal já absorveu o duro golpe que foram as manifestações populares, que os políticos parecem voltar a se acomodar?
A expectativa da maioria dos parlamentares e dos partidos é de que o gigante volte a dormir, que volte à sua situação anterior, no “berço esplêndido”. Há essa esperança. Mas nós outros temos uma expectativa contrária a isso, de que essa movimentação seja permanente, embora ninguém consiga ficar na rua o tempo todo, mas que haja essa cobrança, essa mobilização. De fato, a maioria dos parlamentares, como se revelou nos próprios discursos no início das manifestações, fica muito incomodada. Muitos falavam que era minoria, que eram baderneiros, movimentos sem expressão e que não iriam incomodar ninguém, mas de repente se surpreenderam com as massas nas ruas de quase todas as cidades médias e grandes do Brasil. Foi o susto das elites. Agora o movimento perdeu aquele caráter massivo — o que não significa que não volte a tê-lo, já que avalio que isso pode passar a ser um tanto intermitente. Entendo que os parlamentares não vão mais se livrar definitivamente dessa pressão. Mas eles são sagazes, espertos, na medida em que o movimento reflui, eles voltam a suas práticas tradicionais; se o movimento cresce, eles recuam. Não por acaso, entre a manutenção do mandato de Donadon, o deputado-presidiário, e o voto aberto, houve um fim de semana, quando em geral os deputados vão para suas bases. Lá, nelas, sofreram cobrança fortíssima. Colegas conhecidos que não votaram na sessão — foram cinco no Rio — estão sendo muito cobrados pelas redes sociais, nas ruas. Imagino que aqui em Goiás tenha havido a mesma coisa [os goianos que faltaram à sessão foram Jovair Arantes (PTB), Heuler Cruvinel (PSD) e Marina Sant’Anna (PT), sendo que a petista estava na Câmara, assinou presença, mas se retirou na hora da votação; no dia seguinte à votação, a deputada disse não ter tido conhecimento prévio de que haveria a votação da cassação de Donadon naquela noite e que saiu da Câmara para cumprir um compromisso em Goiânia — uma visita técnica ao Estádio Serra Dourada dentro da problemática das torcidas organizadas, assunto sobre o qual ela tem um projeto em curso]. Aí a turma se assusta. Acho que essa pressão das praças sobre os palácios é fundamental para a democracia avançar.
 
Elder Dias — O sr. é reconhecidamente atuante na questão dos direitos humanos, mas não integra a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) na Câmara dos Deputados. Por quê?
A comissão perdeu a letra “C”, de “credibilidade”, virou “Omissão” dos Direitos Humanos...
 
Elder Dias — Por ser presidida pelo pastor Marco Feliciano (PSC)? Mas ele não comanda a comissão dentro dos preceitos legislativos? Politi­camente, ele não está dentro das regras?
Sim, ele é o presidente legal da comissão, mas não é um presidente legítimo, por causa de sua posição política. Ele já teve manifestações racistas e preconceituosas. Aliás, lembre-se bem, esse deputado estava ausente na votação do caso Donadon e ausente na votação do voto aberto, também. Mais do que nunca Feliciano é o presidente da “omissão” dos Direitos Humanos porque é um omisso, quando não um fundamentalista muitas vezes raivoso, que encontrou seu nicho para reprodução de seus mandatos com uma parcela da sociedade que é muito conservadora, muito reacionária. Ele ganhou uma visibilidade que nunca teve quando assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos, ficou felicíssimo com isso, na base do “falem mal, mas falem de mim” — já que ele nega quando dizem que ele é racista, é homofóbico, é contra a igualdade entre homens e mulheres —, tudo isso funciona para o eleitorado dele. Assim como ele é o presidente de fato e de direito da comissão, nós temos todo o direito legal e regimental de não coonestar o que essa comissão faz agora, ao se pôr contra territórios de índios, contra os quilombolas, fora outras questões das minorias. E um detalhe importante: Marco Feliciano só é presidente dessa comissão porque o PT, o PMDB, o PCdoB e o próprio PSDB tinham prioridade para escolher essa presidência, como tradicionalmente já fizeram, mas não quiseram desta vez. Parece que quanto mais o partido está em instâncias de poder, menos valor dá para os direitos humanos, porque é uma comissão que não mexe com a dinâmica econômica, é diferente da (Comissão de) Finanças e Tributação e da Constituição e Justiça, por exemplo. É uma comissão meio decorativa, meio simbólica. Os direitos humanos podem estar no discurso de todos, mas não está na prática deles. Por isso, os grandes partidos foram abrindo mão e a CDHM caiu no colo do PSC, partido de viés ultraconservador. Deu no que deu.
 
Elder Dias — O sr. comanda um grupo que busca fazer contraponto à CDHM?
Sim, os deputados que têm um histórico com os direitos humanos e que ficaram chocados com o fato de a CDHM estar nas mãos de que não tem compromisso com esses direitos resolvemos criar essa frente parlamentar em defesa dos direitos humanos. Está funcionando, claro que não tem a estrutura, a força de uma comissão permanente, mas cumpre, pelo menos neste ano, o seu papel, preenchendo a lacuna que a comissão deixa.

Elder Dias — São quantos parlamentares?
Mais de 200 assinaram, mas na direção são 15. Dividimos em áreas de trabalho e eu coordeno o setor da liberdade religiosa e o direito à crença e à não crença — o que, aliás, a comissão permanente não atura. Lá é na base do “crê ou morre”, do cruzadismo, da religiosidade medieval em pleno século 21.

Frederico Vitor — O Brasil inteiro pergunta onde está Amarildo [Dias de Souza, ajudante de pedreiro que desapareceu depois de ter sido detido pela polícia no Rio de Janeiro]. Em Goiás desapareceram mais pessoas após abordagens policiais do que na época da ditadura. O sistema de segurança pública do Brasil está em crise? É preciso repensar?
Sem dúvida. Aliás, a pergunta “onde está Amarildo?” nós fizemos, um grupo de 12 parlamentares, no dia 4 de setembro, no Rio de Janeiro, ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo (PT-SP), meu amigo. Falamos a ele que a instância federal tem de entrar nessas buscas, porque com a polícia estadual, com o governo de Sérgio Cabral (PMDB), a resposta nunca virá. Há todos os indícios de que a polícia dita “pacificadora” da Rocinha, onde Amarildo vivia, tem toda a responsabilidade por esse desaparecimento, por ação, muito provavelmente, e seguramente por omissão. Se ele foi detido para averiguação, levado para a sede da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] e de lá ele sumiu, mesmo que a polícia alegue que o liberou e daí ele sumiu. As investigações são morosas, cheias de cumplicidades, as câmeras de vídeo estavam quebradas no dia, o GPS da viatura não estava funcionando. A reconstituição dos últimos passos de Amarildo só foi feita agora, mais de um mês depois do crime, e a família não pôde participar. Quer dizer, está tudo errado, com evidentes sinais de ter sido montado um esquema para não se apurar nada, o que revela que a política tem muito a ver com esse caso, ou seja, quem existe para nos proteger é cúmplice de desaparecimentos, pratica torturas, ao que tudo indica. Não há só um Amarildo, há dezenas, muitos deles desaparecidos com suspeita de envolvimento da polícia. Isso exige de nós o repensar do serviço público da polícia no Brasil. Temos de discutir a unificação das polícias. A polícia militarizada ganhou um caráter muito repressivo e truculento com a ditadura, então temos de discutir a desmilitarização da polícia, a proximidade comunitária, que muitas vezes acaba sendo um novo poder, completamente ilícito que resolve coisas que não são da sua alçada, e nisso estou me referindo as UPPs . Precisamos discutir o comportamento da polícia na proteção, que é a sua função legal, porque muito das vezes ela usa de violência excessiva, de armas desnecessárias, e aí ela própria provoca a convulsão, o conflito. Temos de fazer no Brasil um processo reconstituinte do serviço público de polícia, fora a questão da remuneração — e incluo também os bombeiros —, que, fora o que paga o Distrito Federal, é pífia. Quando eles lutam pela PEC (Proposta de Emenda à Cons­ti­tuição) de número 300 (que estabelece um piso salarial nacional para os servidores da segurança pública), que aliás nem fixa valor de remuneração, eles têm toda a razão. Então, existe problema de tudo quanto é lado, e o resultado disso é a péssima qualidade dos serviços, quando não uma prestação de serviços contra a própria sociedade, ou seja, crimes cometidos por quem deveria proteger e prevenir.
 
“O?Ministério Público também precisa de controle”
 
Cezar Santos — Na questão específica de Amarildo, o sr. acredita que federalizar a investigação do caso seria um caminho? Aqui em Goiás foram federalizados vários casos de assassinato. Nota-se que a federalização é um trabalho claramente político. No Rio de Janeiro, como o governo é parceiro do PT, o caso vai ser federalizado?
O que o ministro da Justiça falou é que é uma questão complicada, o governo federal tem de solicitar ao estadual, que o ideal seria o procurador-geral da República solicitar o processo de federalização e que os parlamentares deveriam procurá-lo. Só que até o momento ainda, o procurador-geral ainda é interino, já que Rodrigo Janot ficou de assumir neste início de setembro. O ministro não se mostrou definido a fazer essa federalização, embora tenha reconhecido a repercussão até internacional do caso. E é claro que o viés político existe, federalizam processos sem muitos problemas onde a oposição é governo e onde tem um aliado, ficam cheios de dedos, vão com cautela. Isso vale em qualquer época de governos, o interesse público mesmo é que fica em jogo. E outra coisa, se federalizar para melhorar a investigação tudo bem, o resultado é que importa.
 
Elder Dias — O sr. votou contra a PEC 37, que prejudicaria o Ministério Público quanto às investigações. O sr. não acha que a instituição, a partir do que foi discutido, precisaria rever o seu papel, até para poder cumpri-lo melhor?
Em primeiro lugar o Ministério Público é instituição importantíssima, é o fiscal da lei, fundamental. Segundo, deve ter, sim, poder investigativo em regime de colaboração com quem compete investigar, a Polícia Civil ou qualquer outra instituição. E, terceiro, eu acho que é preciso disciplinar melhor — e há projetos para isso — para regulamentar essa irrevogável função investigativa do Ministério Público, para que ela não se restrinja a alguns casos, apenas os que têm mais visibilidade ou os mais rumorosos. Essa regulamentação, é muito importante e bem diferente do que a PEC 37 propunha. O Ministério Público é muito decisivo, é onde o cidadão comum pode recorrer. E qualquer instituição no Brasil, qualquer que seja, tem de estar sob controle de sua excelência, o cidadão, tem de estar a serviço da população. Se não for assim, não vai funcionar bem, porque há sempre uma tendência a se encastelar, se autonomizar em relação à sociedade, que é quem nos mantém. E eu falo “do lado de cá do balcão”, porque eu exerço uma função pública. O Ministério não pode estar acima da lei por ser o fiscal dessa lei. Ele também tem de ser controlado e, assim como o Conselho Nacional de Justiça é muito importante, também o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), reverberando as cobranças da sociedade, tem de ser mais ativo.
 
Elder Dias — É de sua autoria projeto que disciplina o uso das aeronaves da FAB [Força Aérea Brasileira], tendo em vista o uso desses equipamentos pelo governador do Rio (Sérgio Ca­bral/ PMDB) e dos presidentes da Câmara (Henrique Alves/PMDB) e do Senado (Renan Calheiros/ PMDB). Quando os políticos brasileiros vão deixar essa prática ainda colonial e imperial para se adequar aos novos tempos e se portar como devidos servidores públicos com mandato que são?
Quando tiverem de pagar esse preço em termos eleitorais, ou seja, tudo depende da consciência do cidadão. Como todos os que estão no Poder Legislativo e Executivo dependem do voto popular — ainda que o sistema favoreça o poderio econômico, que as eleições sejam compradas, ainda que seja preciso uma reforma política radical, que o atual Congresso não tem disposição de fazer —, é preciso ir investigando e cobrando. É importante regulamentar isso, porque senão os desmandos se sucedem. Neste exato momento há um caso que os grandes jornais ainda não repercutiram, que é uma denúncia de abuso no aluguel de veículos por parte de deputados federais e da compra de combustível para seus jatinhos particulares por parte dos senadores, a ponto de hoje haver 21 deputados investigados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por alugar carros em empresas fantasmas — chega ao que deveria ser uma locadora e se depara com uma padaria, com uma loja de perfumes etc. Isso é um escândalo! Os deputados alegam que não sabem de onde veio o carro. Mas há indícios de cumplicidade. Antes de sair na mídia, eu fiz um memorando ao presidente da Casa exigindo que a mesa diretora solicitasse ao TCU essa investigação e mandasse para a Cor­re­ge­­doria e para o Conselho de ética para apurar a responsabilidade dos parlamentares nesse abuso. Pedi também que fosse feito um cadastro das locadoras de veículos idôneas, excluindo-se as inidôneas, que impedisse o aluguel de automóveis de luxo e que estabelecesse um porcentual da verba in­denizatória, que vai de R$ 25 mil a R$ 35 mil por deputado, pa­ra o aluguel de veículos. São medidas simples e óbvias, mas que até hoje ainda não foram feitas pela presidência da Câmara, ou seja, há uma certa leniência com esse tipo de abuso. Isso só desgasta o Poder Legis­lativo, en­tão o povo vai para a rua dizendo que não os representa e ainda a­cha­mos que eles não têm razão. Quando dizem que sem partidos não há democracia, há certa ver­da­de; mas, com certos partidos que há por aí — sobretudo os grandes —, que sofrem de nanismo moral, não há democracia também.
 
Cezar Santos — Ao deixar o PT, o sr. disse que estava saindo porque o PT tinha saído de si mesmo. Só naquele mo­mento o sr. percebeu que o partido tinha perdido o eixo ético? Algum episódio decretou ou forçou sua saída?
De momento, em nossa vida, só há gestos irrefletidos e de explosão. Ninguém saiu do PT em um gesto assim, passional, embora a emoção sempre conta. Toda decisão no plano da política — e é bom que seja assim também no plano pessoal — é fruto de reflexão e de um acúmulo para tomada de decisão, e foi assim que aconteceu comigo. Alguns saíram em 2003, logo depois da reforma da Pre­vi­dência, que era algo contra o PT sempre tinha lutado, mas logo aderiu quando Lula tomou posse. O convite a Henrique Meirelles para assumir o Banco Central e ser o homem do dinheiro no País, também foi uma enorme contradição. Meirelles havia sido eleito com uma campanha riquíssima aqui em Goiás. Mesmo dentro do PT eu me alinhava à esquerda do PT, que questionava certos procedimentos, a amplitude do financiamento de campanhas para grandes empreiteiras, enfim, todo aquele comportamento do campo majoritário do partido. Mas a gente ainda achava que o PT ainda era um espaço em disputa, que era importante afirmar os valores e eixos fundamentais do partido desde sua fundação. Só que em 2005 nós chegamos ao limite, quando explodiu o caso do mensalão. Sinceramente, eu não tinha o mínimo conhecimento nem da existência de Marcos Valério. Soube e, claro fui contra a cara contratação do Duda Mendonça para ser o marqueteiro da campanha do Lula e contestamos a aliança com o PR [Partido da Repú­blica], que, muito mais do que do falecido vice-presidente José Alencar era e é de Valdemar Costa Neto, um símbolo do que há de mais contestável na política. Esse caminho que o PT foi escolhendo acabou nos levando à saída. Saímos do PT para continuar praticando o valor que o próprio PT um dia nos ensinou, em tempos pregressos. E baseado nisso se deu a fundação do PSOL, não sem problemas, mas já com a experiência do PT, para evitar que sejamos arrogantes, para não nos proclamarmos “os mais puros”. Nós também temos problemas no PSOL, erros, podemos ter filiado oportunistas, interesseiros, algumas figuras públicas que cometem desmandos. Só temos de ter a capacidade de não acobertar ninguém nem de dizer que nossos erros são menos graves, ter humildade para não escondê-los ou não apontar os dos outros como maiores que os nossos.
 
Cezar Santos — O PT mudou ou sempre foi isso mesmo?
O PT hoje é um partido completamente diferente, tanto que não comentaram nada no caso do deputado Natan Donadon. O PT não disse um “ai”. Aliás, o partido todo votou para levar o caso para o plenário, o que abriu a possibilidade de manter o mandato dele, mesmo com todas as condenações. É bom ressaltar que desde a segunda-feira daquela semana a gente sabia a pauta da semana e que haveria uma sessão extraordinária marcada para as 19 horas de quarta-feira para apreciar este caso — aliás, era um caso tido como favas contadas [para a cassação do deputado], já que Donadon havia sido desligado do PMDB — que é muito generoso com seus filiados, por mais que haja denúncias contra eles — era um sinal de que politicamente ele estava em uma situação muito precária. Mas o voto secreto permite absurdos e foi o que aconteceu. Durante a sessão, o PT não encaminhou a votação, na CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] o partido defendeu, e ganhou por 39 votos a 16, que o caso fosse a plenário, em vez de a perda do mandato ser apenas declarada pela mesa diretora, tão somente. Perdemos porque o PT todo votou a favor de ir a plenário. Criamos o cenário esdrúxulo do “deputado presidiário”, “Sua Excelência, o detento”. É um absurdo! Mas o PT hoje não tem mais aquele “ethos” ético mínimo, para desconforto — tenho de reconhecer — de alguns parlamentares do próprio partido. Só que esse grupo é minoritário em uma bancada de 90 deputados.

Cezar Santos — O PSOL é um partido com representatividade, mas ainda muito pequeno. Como vai enfrentar a próxima campanha, que, como qualquer uma, será muito pesada em termos financeiros? Como colocar suas propostas?
O PSOL é ainda um partido em construção, pequeno, mas com grandes ideais. Somos uma sigla mínima ainda, mas com vocação de grandeza política. Um partido político hoje, se é um cartório eleitoral para fazer negócios ele serve na bolsa das negociações de alianças, porque, por menor que seja, vai contribuir com minutinhos no horário eleitoral. Só que o PSOL se constitui na contramão disso tudo. A gente quer ser um partido ideológico, doutrinário, de esquerda, que ressignifica o socialismo sem a ortodoxia, sem aquela velha concepção dogmática, que gerou o stalinismo e atrocidades no próprio mundo socialista. Não há paradigmas.
 
Cezar Santos — O que se vê de socialismo atualmente não anima ninguém que tenha um mínimo de capacidade de reflexão.
Neste livreto que eu trouxe aqui (mostrando-o), nós falamos que é preciso também, além de falar da crise do capitalismo, reconhecer que também há uma crise no socialismo no mundo de hoje. É necessário ter inventividade para entender, no século 21, socialização dos meios de produção e socialização dos meios de governar. Construir isso é difícil, mas, por outro lado, há um grande alento, porque percebe-se que parcelas significativas da juventude, em um mundo partidário tão contestado, têm o PSOL como referência. Não necessariamente se filiam, porque vida partidária interna, cá entre nós, é muito chata, rançosa, exige uma disciplina, uma doação e uma abnegação enormes. O sistema também é feito para que a gente não se constitua. A Justiça Eleitoral tem exigências imensas, o que é muito penoso para quem não tem um esquema de escritório de advocacia. A antiga direção do PSOL aqui em Goiás nos deixou um rombo de R$ 70 mil, que, para as grandes legendas, não é nada — tem parlamentar que tem isso no bolso da calça —, mas para nós, é uma soma incalculável.

Cezar Santos — Estão indo para a Rede (Sustentabilidade) de Marina Silva.
Esses dirigentes estão indo para a Rede e recomendo à Rede que não os coloque como gestores, por­que poderão se “enredar” (ri­sos). Não estou nem falando que hou­ve dolo ou que embolsaram di­nhei­ro, mas houve uma completa incompetência de gerenciamento. En­tão, temos esses problemas, pela fal­ta de estrutura do PSOL, uma ba­se material e administrativa que ain­da nos falta. Porém, temos o es­sen­cial na política, que é o ideal, a di­mensão utópica. Se não tem di­mensão utópica na política — as­sim como ocorre no jornalismo, com a atenção à qualidade da in­for­ma­ção —, você se corrompe. No caso da política, perde-se a qualidade ideológica, perdem-se as fronteiras éticas e programáticas. O PSOL é um partido ainda em construção, mas que tem um papel a cumprir na sociedade. Aquele bordão “PSOL, um partido necessário” é muito real, a meu ver. Acre­di­to nisso e não me vejo fazendo po­lítica em outro partido, sinceramente. Só mais um detalhe: a contestação da política em geral, pelas ruas, por parte da juventude, me levou a produzir este folheto, que, a esta altura da vida, já com três mandatos de deputado federal, eu não imaginava que tivesse de fazer: “Para que serve um deputado?”. É algo bem didático, porque o desafio é combinar a democracia representativa — muito desvalorizada pelo mau comportamento dos partidos e de seus políticos — com a democracia direta, o que, acho, é um desafio para o século 21.

Elder Dias — O sr. também é escritor, especialmente em sua área de formação, a História. Ainda consegue conciliar esse lado com o trabalho de parlamentar. Dá tempo de escrever, produzir?
Infelizmente, não. Tenho 25 livros publicados, alguns já em minha etapa parlamentar e continuo escrevendo muito — artigos para jornal e textos de todo tipo, mais vinculados ao mundo político, obviamente. Recebi, da editora, o pedido para atualizar o livro “História da Sociedade Brasileira”, que termina com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É uma obra que pega grandes autores clássicos do pensamento acadêmico historiográfico brasileiro, como Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Octavio Ianni, Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré e muitos outros.  Nem Fernando Henrique Cardoso eu esqueci o que ele escreveu (risos). Traduzi isso em uma linguagem com rigor histórico, que cumpriu seu papel. Até o releio para relembrar coisas. Ainda não consegui desenvolver o projeto, por conta da falta de tempo.

O que fiz foi um pequeno livro agora, muito pessoal e existencial, confessional, quase, porque fui obrigado a parar contra a minha vontade, na medida em que tive de colocar uma “motosserra” aqui (põe a mão no peito) para abrir o esterno e olhar lá meu interior, que andava meio entupido, também graças à política. O nível de tensão me gerou uma obstrução de 95% nas artérias e tive de colocar quatro pontes de safena. Foi difícil, eu não esperava, poderia até ter morrido na tribuna, o PSOL iria ter um mártir (risos). Fiz a cirurgia pelo sistema SUS e o médico, que eu conhecia, era um camarada do PT, Leôncio Feitosa. Ele fez o exame com contraste, mostrou o resultado para a família e disse “opera já!”. “Já”, em uma instituição pública, mesmo para deputado, não é na mesma hora.  Esperei cinco dias e me preparei para me despedir desta vida. Revisitei meus valores religiosos — sou de formação cristã, sou católico.
 
Elder Dias — O berço religioso do sr. é a Teologia da Libertação?
Claro. Fui da juventude estudantil católica e sou amigo pessoal de dom Tomás Balduíno [bispo emérito da Cidade de Goiás], meu querido amigo e mestre, e de dom Pedro Casaldáliga [bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT). Tive o privilégio de conhecer dom Hélder Câ­ma­ra e dom Fernando Gomes dos San­tos [arcebispo de Goiânia até 1985], que não era exatamente da mesma linha dos demais, mais ousada, mas que, no tempo da ditadura, acolhia quem estava sendo perseguido e foi um homem firme, de resistência ao regime.
 
Cezar Santos — Que esperar do novo papa, Francisco?
O papa Francisco nos abre algumas esperanças nesse rumo, bem diferente do que fizeram Ratzinger [Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI] e o papa João Paulo II. Então, tive de ficar três meses em recuperação e escrevi um livro chamado “Orações do Coração”. Leonardo Boff [teólogo que foi excomungado da Igreja por ser adepto da Teologia da Liber­tação], que faz o prefácio, me disse: “Olha, Chico, ficar doente é a melhor coisa para escrever” (risos). Espero voltar a escrever sem precisar de estar no leito de morte, quero estar no leito da vida. Mas é incompatível levar a sério a tarefa de escritor, de pesquisador e de acadêmico com um mandato parlamentar também levado a sério. Vim a Goiânia para uma visita familiar e meus companheiros do PSOL trataram de colocar uma agenda completa para mim. 

 

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