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Entrevista: Leda Paulani

Leda Paulani

IHU On-Line - Quais as lições de Marx em relação ao livre mercado que podem nos ajudar a compreender a crise financeira atual?

O que Marx mostrou de mais importante sobre o assim chamado ?livre mercado? é que ele esconde por trás de sua aparência de liberdade, igualdade e equilíbrio o contrário disso. Ele põe a aparência de liberdade porque todos são juridicamente iguais, proprietários de mercadorias, e  parecem livres para vender  suas mercadorias a quem quiserem e se quiserem e para comprar o que quiserem, de quem quiserem e se quiserem. Ele põe a igualdade porque quando mostra que algo, uma bolsa por exemplo, é igual a R$ 25,00, a venda da bolsa parece uma transação justa, em que se trocou valor de um tipo por valor de outro tipo. A aparência de equilíbrio vem da reiteração das transações mercantis (com suas trocas iguais) no dia-a-dia dos mercados, num movimento que parece poder repetir-se  indefinidamente. Quando surgem crises da dimensão da que agora vivemos, elas não combinam com essa aparência idílica e denunciam a complexidade e as relações contraditórias que constituem o sistema capitalista.

IHU On-Line - Qual a validade das definições de Marx para o crédito e o capital financeiro neste momento de crise mundial?

Crédito e Capital Financeiro condicionam-se mutuamente. Quando o dinheiro serve não apenas para comprar mercadorias (bens, serviços, força de trabalho, máquinas etc.),  mas igualmente para pagar dívidas (e também comprar honra, consciência, enfim tudo aquilo que seja adaptável à forma preço  ? e fica difícil descobrir o que não seja), Marx diz que ele se transforma em meio de pagamento geral e se ele funciona assim é porque já estão em cena credores e devedores. Aquele que fornece crédito é ao mesmo tempo o detentor de uma forma especial de capital, que Marx chama de capital portador de juros, e que mais popularmente é chamado de capital financeiro. Marx diz sobre o capital portador de juros que ele é a matriz de todas as formas aloucadas de capital. Quem acompanhou o redemoinho vivido pelos mercados financeiros do mundo nas últimas semanas não pode deixar de dar-lhe razão. 

IHU On-Line - Em que sentido o conceito de "capital fictício" elaborado por Marx contribui para esclarecer o caráter da crise de agora?

Dentre todos os conceitos criados por Marx para dar conta da realidade capitalista, talvez não haja conceito mais importante para interpretar a crise atual do que o de capital fictício. Muitos autores têm considerado que, pelo menos desde o início dos anos 1980 do século passado, o capitalismo vive uma nova etapa, cujo tom é dado pela financeirização. Essa financeirização, produzida pelo crescimento desmesurado da riqueza financeira (frente ao crescimento da riqueza real), implica a submissão da totalidade do sistema econômico aos imperativos da lógica financeira da acumulação, o que garante a continuidade do crescimento dessa mesma riqueza. Ora, esse crescimento desmesurado simplesmente não existiria se não existisse o capital fictício. Quando o dinheiro é emprestado para que se o receba de volta aumentado, numa data futura, está implícita nessa transação a capacidade potencial que o dinheiro tem de se multiplicar. Essa capacidade é ?verdadeira?, se esse dinheiro for dar uma voltinha no mundo da produção de bens e serviços, mas cria capital fictício quando, por meio de uma série de mecanismos, cuja explicação demandaria um espaço que não temos, ele não percorre esse caminho. A crise que agora presenciamos tem em seu bojo uma criação num grau inédito de capital fictício. Tudo seria mais simples se pudéssemos simplesmente eliminar esse capital, digamos assim, ?espúrio?, penalizando apenas quem contribuiu para sua disseminação, conseguindo com isso colocar o sistema de volta  num curso menos fantasmagórico. Mas isso está longe de ser simples, porque existem inúmeros fios nervosos ligando um sistema ao outro. O crédito para a produção e para o comércio é o mais importante e o mais visível desses fios.  

IHU On-Line - É correto afirmar que a crise financeira internacional é conseqüência da crise do capitalismo?

Essa é uma questão polêmica, cuja resposta não podemos dar aqui integralmente, pois o espaço não é suficiente. O ponto mais polêmico é se o capitalismo está ou não em crise e se está desde quando. Dentre os autores marxistas, alguns  julgam que o capitalismo está em crise desde meados dos anos 70 do século passado, porque desde então as taxas médias de crescimento declinaram em todo o planeta. Outros acreditam que há, desde pelos menos uma década antes disso, um problema irresolvido de sobreacumulaçao de capital. Outros ainda acreditam que  o capitalismo passa por ciclos sistêmicos de acumulação, ora real, ora financeira e que estaríamos agora num ciclo de acumulação financeira. Seja como for, o fato é que, pelo menos desde o início deste novo século, essa morosidade do sistema no que tange ao crescimento da riqueza real parece ter sido substituída por uma velocidade maior, puxada fundamentalmente pela decisão da China de passar a integrar o sistema capitalista. Nesse sentido, o terremoto financeiro que assistimos tem funcionado como desmancha prazeres, de modo que se poderia dizer, ao contrário, que a crise do capitalismo (a que virá agora) é que é conseqüência da crise financeira. Mas, como disse, essa uma questão muito complicada para ser trabalhada aqui.
 
IHU On-Line - A crise financeira que assusta o planeta pode ser uma ?jogada política? dos países envolvidos?

Não. Pensar assim é endossar aquilo que se costuma chamar ?visão conspiratória da História?. Por mais onipotente que se imaginasse, nenhum político do centro do sistema colocaria deliberadamente em marcha um processo como esse para alcançar seja lá qual fosse o objetivo. O processo não é evidentemente controlável, e tampouco se sabe de antemão quais serão suas efetivas conseqüências. O feitiço viraria contra esse feiticeiro de araque muito antes do que ele pudesse imaginar. Isso não quer dizer, no entanto, que a própria crise não venha a servir, num futuro não tão distante assim, de argumento para a adoção de políticas fiscais restritivas, de contenção monetária, de cortes de direitos aos trabalhadores, de encolhimento de direitos sociais etc. O aumento do poder do trabalho organizado é um temor constante (como deixou explícito um colunista do ultraliberal jornal Daily Telegraph ao criticar o plano ?socialista? de socorro à crise formulado pelo governo britânico ? vide matéria na Folha de São Paulo de 10/10, p.B10), de modo que nunca se perde a oportunidade de criar situações em que ele se enfraqueça. Além disso, é um equívoco e uma ingenuidade imaginar que essa crise possa ser atribuída aos ?desvios de conduta? de personagens específicos, sejam eles políticos maquiavélicos, investidores gananciosos ou especuladores inescrupulosos. Ainda que os ?desvios? existam, eles são, na maior parte dos casos, produzidos pelas próprias circunstâncias sociais, ou seja, a raiz de tudo é sistêmica e não ética.
    
IHU On-Line - A partir das teorias de Marx, quais os rumos que podemos imaginar para o mundo capitalista, a partir da crise financeira internacional?

Esta pergunta está relacionada à anterior sobre a crise do sistema capitalista e sua resposta depende, em última instância, da forma como enxergamos o capitalismo  hoje. Tem se falado muito que voltaremos a viver sob um capitalismo super regulado, como aquele que vigiu desde o fim da Segunda Guerra até meados dos anos 1970, que o capital financeiro perderá força, que o neoliberalismo morreu etc..  Não acredito muito nessas previsões. Creio que o reinado financeiro ainda durará por um bom tempo, primeiro porque, por mais que a crise tenha debilitado essa poderosa riqueza financeira, ela ainda parece grande demais para deixar de impor seus requerimentos ao andamento material do planeta. Segundo porque o que vivemos hoje é o resultado de um longo processo de financeirização, cujo desmonte não se dará assim do dia para a noite. Terceiro porque, e esse talvez seja o argumento mais forte, ninguém sabe para onde vai o sistema monetário internacional, e esse processo todo ? a financeirização e sua crise ? é resultado, entre outras coisas, da (não) solução encontrada para a desarticulação do sistema de Bretton Woods. 
 
IHU On-Line - A crise financeira internacional representa o fim de um ciclo? Podemos aguardar uma mudança na condução do sistema financeiro internacional?

Sobre ciclo já falei um pouco acima. Mas vale uma observação. Se entendemos que a financeirização configurou um ciclo e se ao mesmo tempo acreditamos que esta crise marca o fim do predomínio do capital financeiro, então estamos autorizados a falar que esta crise marca o fim de um ciclo. Se pensarmos, porém, que a economia mundial vinha finalmente retomando um crescimento menos anêmico depois de décadas de resultados pobres, então não dá para acreditar em ciclo e teremos simplesmente que admitir que as estripulias financeiras destinadas a aumentar mais e mais a riqueza e o poder do capital financeiro atropelaram o ciclo que vinha firmemente engatando a marcha da subida.

IHU On-Line - Até que ponto a regulação do mercado proposta por Marx e Keynes, permitirá que o mercado não se autodestrua?

Parece evidente que passaremos por um período de maior regulação, até porque isso acabará por se impor como exigência política. Contudo, se prevalecer, como imagino que prevalecerá, o poder do capital financeiro, essas crises abissais continuarão no horizonte, porque o capital financeiro é extremamente flexível e pródigo em invenções que escapam a qualquer regulação. Além disso, não podemos esquecer que vivemos uma fase do capitalismo em que o dinheiro e o poder estão muito próximos, particularmente por conta de ativos financeiros importantíssimos como os títulos da dívida pública, cujo volume é hoje enorme em praticamente todos os países. Passada a turbulência e o temor, essa proximidade impedirá que qualquer regulação mais efetiva se estabeleça.

IHU On-Line - Como a crise da economia mundial pode afetar a economia ecológica, apresentada por Marx? (essa pergunta não vou responder, pois não sei a que vocês se referem quando falam da economia ecológica ?apresentada por Marx?)

IHU On-Line - A senhora acredita que a atual crise irá suscitar uma renovação política mundial? Em que sentido a senhora vislumbra mudanças?

Uma verdadeira renovação política mundial só aconteceria se a crise permitisse uma reorganização dos trabalhadores e dos movimentos sociais de modo geral e planetário, num processo que permitisse a construção de uma efetiva resistência a esse ?fascismo do capital? ( se é que a expressão não constitui pleonasmo) que experimentamos há pelo menos um quarto de século. Infelizmente creio que estamos muito longe de um cenário como esse. Ao contrário, como já disse acima, me parece que a crise vai contribuir para vitaminar o discurso conservador (afinal estamos  numa situação de emergência!) e permitir a elevação do grau de exploração que possibilita, a um só tempo, enfrentar a tendência congênita deste tipo de capitalismo a sobreacumular capital,  e  gerar a renda real que coloca sempre ao alcance da mão a possibilidade de tornar absolutamente concretos, assim que se queira, os luxuosos desejos dos donos do capital fictício. Assim, se alguma mudança houver será talvez uma perda relativa de importância dos EUA, mas nada que altere o âmago do sistema capitalista e de sua reprodução tal como hoje se dá.

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