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Outubro: A Atualidade da Audácia

José Corrêa Leite- Cientista Político

A revolução russa de outubro de 1917 abriu, junto com a Primeira Guerra Mundial, o século XX como época histórica. Ela redefiniu e atualizou o próprio significado da revolução, firmado no imaginário moderno pelo seu ato fundador político ? a revolução francesa. E modelou as características do século XX.

Como trabalharmos, na nossa memória coletiva, este acontecimento tão grandioso? Michael Lowy destaca que esta é ?uma herança preciosa? e ressalta, na linha de Walter Benjamin, a ?importância de salvar a tradição dos oprimidos das garras do conformismo que tenta se apossar dela?.

Porque muitos podem reivindicar a tradição socialista e valorizar Outubro como algo importante, mas já superado pela história, enquanto se acomodam à inércia, às linhas de força dos poderes estabelecidos.  Outros, buscando caminhos radicais de mudança social, podem reivindicar o valor de verdade de Outubro, como um modelo a ser seguido na atualidade, o que os leva a se isolarem da ação efetiva em um solo histórico muito diferente.

O fundamental é, todavia, que Outubro estimule a reflexão atual sobre as vias da mudança de um mundo que caminha para o abismo, empurrado pela necessidade do capitalismo de expandir sempre a acumulação de capitais. O planeta não comporta uma sociedade que precisa consumir mais e mais recursos, uma economia que esgotará até a última gota de petróleo para em seguida continuar queimando carvão ? tudo para alimentar a satisfação de necessidades sempre renovadas, criadas pela publicidade, das suas parcelas afluentes. Uma sociedade mesquinha e egoista que, em um momento que a tecnologia permite que o conhecimento, a arte e a cultura sejam libertados se seus suportes materiais e industriais, permitindo seu compartilhamento gratuito com todos, vê seus poderes estabelecidos tentarem manter a população no obscurantismo.

O pensamento político deve agora buscar as vias para uma sociedade pós-capitalista em um capitalismo muito diferente daquele de um século atrás.  A revolução socialista foi então pensada como a conquista de um poder político centralizado (burguês) e o estabelecimento de um novo poder (proletário) a partir do qual se impulsionaria a mudança do conjunto da formação social, de uma economia capitalista para uma economia socialista. A revolução socialista completaria uma obra de ?engenharia social? empreendida pelo capital ao concentrar, na grande indústria, enormes ?exércitos? operários, que apoiados no controle do estado, se apropriariam também dos meios de produção privados fundamentais.

Temos que romper com o que Perry Anderson certa vez chamou de adesão imaginativa ao paradigma de Outubro ? a fixação na estratégia da greve geral insurrecional. Essa concepção de transformação era o resultado de um capitalismo industrial concentrado em grandes unidades de produção, hoje cada vez mais desnecessárias , caras e politicamente perigosas. As novas tecnologias da informação permitem e impulsionam a organização descentralizada do capital, que pode inclusive retomar formas aparentemente arcaicas, como o trabalho a domicílio, agora passível de ser controlado à distância. A greve geral insurrecional seria a contrapartida revolucionária, para estas sociedades industriais, do que representava a estratégia da guerra popular prolongada nas formações sociais agrárias.

Não se trata, de outro lado, de resgatar a tradição social-democrata, igualmente obsoleta, da longa marcha pelas instituições da sociedade burguesa e em particular pelo estado ? que resultaram, nas últimas décadas, na adesão desavergonhada ao neoliberalismo a pretexto de se fazerem as mudanças possíveis no mundo globalizado.

Precisamos construir um novo caminho estratégico de superação do capitalismo, que parta das estruturas sociais contemporâneas, da fragmentação e redefinição do lugar das diferentes instituições (político-estatais, econômicas e sociais), da redefinição destas instituições e das nações pelo capital financeiro, dos novos modos de comunicação que estão formatando a subjetividade atual ? e da nova agenda de problemas e desafios colocada para a humanidade.

Este caminho não pode, ao menos nas sociedades mais complexas, estar tão focado no estado como antes ? porque a ação e a organização sociais não passam tanto por esse terreno. Tampouco pode se apoiar em algum processo de concentração espontânea dos trabalhadores pelo próprio capital. Ou na existência de um território passível de ser mantido como ?zona liberada? por exércitos populares. Mas tem que resgatar os elementos de autonomia e auto-organização que o socialismo, o anarquismo e o comunismo recuperaram das tradições radicais das revoluções burguesas ? sem ignorar o estado, mas sem subestimar seu papel; sem ignorar a insurreição, mas sem fazer dela um fetiche estratégico.

Este caminho tem que ter como sujeitos (no plural) principalmente (mas não só) massas urbanas heterogêneas (em parte camadas médias, mas em grande parte pobres, embora não tão pobres que consumam toda sua existência na luta pela sobrevivência), mobilizando-as em torno de seus problemas comuns ? como são as questões da desigualdade e dos direitos humanos e serão cada vez mais a questão ambiental, a defesa da qualidade de vida e a própria vida (no sentido literal do termo) e o livre acesso ao conhecimento e à cultura. Terá que valorizar a diversidade e a capacidade de construção de coalizões amplas em torno de temas concretos, em um mundo socialmente mais heterogêneo e politicamente mais disperso. Terá que se apoiar naquilo que é, crescentemente, uma forma de vínculo social significativo para as novas gerações, as redes digitais e o que elas propiciam de comunicação, informação e expressão. Terá que trabalhar, simultaneamente, no terreno nacional e internacional, porque o capital se tornou qualitativamente mais globalizado e o mundo qualitativamente mais integrado, e da mesma forma serão as alternativas para ele.

Outubro continua, porém, uma inspiração em outro sentido bem diverso: no exemplo de ação política que oferece. Em um mundo em que a morte prevalecia sobre a vida e povos caminhavam para o matadouro entoando canções militares (a 1ª GM produziu 20 milhões de mortos), um pequeno grupo de revolucionários foi capaz de romper com a anestesiante ideologia das etapas de progresso e conectar-se com os anseios surdos das amplas massas. Tiveram a coragem de romper, não sem traumas, com velhas crenças e velhos hábitos: quando Lenin, Trotsky e aqueles que entenderam o que se passava escolheram o caminho da insurreição socialista, enfrentaram a oposição pública até dos dirigentes bolcheviques mais antigos, como Zinoviev e Kamenev, que só podiam conceber a ?revolução? como democrático-burguesa. (Não foi Gramsci que caracterizou Outubro como uma ?revolução contra O Capital??)

A opção fundamental feita na Rússia em 1917 foi uma aposta política. Foi, como enfatiza Daniel Bensaid, a coragem de se libertar da tirania de uma história bloqueada, congelada pela falta de imaginação ? uma história que pôde ser reinventada porque sujeitos políticos compreenderam que o tempo da política não é o dos relógios e tiveram ousadia para transformarem pequenas brechas em avenidas. Caso as escolhas tivessem sido diferentes e os bolcheviques seguido com a política socialista tradicional, jamais teríamos conhecido Outubro e o mundo teria sido muito diferente.

O desastre que atinge hoje o planeta não é menor do que aquele que golpeou o mundo europeu depois de agosto de 1914. As modificações nas estruturas sociais e políticas não são menores do que aquelas que então varreram o capitalismo. Mas grande parte da esquerda, agora como antes ainda tributária da ideologia do progresso, de uma concepção de desenvolvimento identificado com a industrialização pesada e o consumismo, parece não ver isso. Continua nostálgica, embora por vezes não o reconheça, do proletariado como sujeito revolucionário imanente da história moderna, constituído pelo próprio avanço do capital, e sua negação histórica ? presa da letra do marxismo mais do que buscando aprender com o método do materialismo histórico. Para ela, parece realista seguir a confortável rotina da inércia, adaptar-se e continuar fazendo o que aprendeu a fazer no passado, mesmo quando se sabe que isso não mudará o mundo.

Retornando a Outubro estamos, todavia, no terreno das grandes escolhas estratégicas, das apostas feitas a partir de leituras da realidade que têm que ultrapassar a superfície dos fenômenos, deixando-se apoderar pela ?paixão pelo real? e podendo pesar sobre o curso da história. Quase todos aqueles que acompanham as mudanças climáticas (inclusive os mais competentes cientistas naturais do mundo) afirmam que caminhamos para uma catástrofe societária maior, que atingirá bilhões de pessoas e produzirá terremotos políticos. Os mais lúcidos intelectuais da atualidade diagnosticam o quadro político mundial ? que podemos mapear de Guantanamo às favelas do Rio de Janeiro ? como de estado de exceção, que amanhã poderá ser aplicado contra outros insubmissos. Em um mundo em que, como afirma Heiner Muller, ?tudo que era humano se tornou estrangeiro?, será que apontar isso é alarmismo e catastrofismo? Ou o realismo aparente não é, de fato, o caminho para a conivência com o desastre e a insignificância política?

A atualidade maior de Outubro é a audácia de não recusar a liberdade na história e procurar tomar suas rédeas nas mãos ? o desafio mais importante para a esquerda atual.

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