Início | Artigos |

Paradoxo distributivo no Brasil

[Paradoxo distributivo no Brasil]

Márcio Pochmann

Muito já tem sido pesquisado, escrito e falado acerca da má distribuição de renda e riqueza no Brasil. Há avanços inquestionáveis em termos de informações quantitativas e qualitativas sistematizadas e de sofisticação teórica em torno da péssima concentração da renda em todo país. Mas ao contrário do debate propositivo e questionador do início da década de 1970, quando a divulgação do censo demográfico contendo dados distributivos empolgou o país contra as injustiças promovidas pelo modelo econômico do período militar, percebe-se, atualmente, o predomínio de discussões paralisantes, quando não acomodativas. Um registro disso é a própria circularidade da improdutiva discussão sobre a vigência de um modelo econômico pró-pobre, muito a gosto do pensamento liberal-conservador. Nesse sentido, o país estaria seguindo no rumo certo, sem necessidades de mudanças. Mesmo sem expansão sustentada da economia nacional, o povo passaria por condições de vida e trabalho superiores, para alguns, jamais vistas historicamente. De todo o modo não há como negar a evidência a respeito da inversão na tendência de aumento da desigualdade no interior do rendimento do trabalho, a partir da queda do índice de Gini. No ano de 2005, por exemplo, esse indicador da desigualdade na distribuição pessoal da renda foi ainda significativamente alto (0,54), embora 8,5% inferior ao constatado em 1980 (0,59). Em grande medida, a reversão no sentido da desigualdade encontra-se diretamente relacionada ao que vem ocorrendo nos estratos superior e inferior da distribuição na renda do trabalho no Brasil. De um lado, observa-se que a participação do decil de maior rendimento (acima de 1,6 mil reais mensais) vem decaindo nos últimos quinze anos. No ano de 2005, os 10% de maior remuneração absorveram 44,7% do total da renda do trabalho, enquanto em 1990 capturavam 48,1%. Com a queda de 7,1% acumulada nestes quinze anos (redução de 0,5%, em média ao ano), o Brasil tenderia a levar cerca de 60 anos para alcançar o estágio atualmente verificado nas economias avançadas. Ademais, deve se considerar também que a diminuição do peso relativo do rendimento dos ricos no total da renda do trabalho encontra-se diretamente relacionada ao movimento de desestruturação do mercado de trabalho, que decorrente do baixo crescimento da economia nacional e da forma com que o país vem se inserindo na economia mundial, cada vez mais dependente da produção e exportação de bens de baixo valor agregado, contida intensidade tecnológica e crescente uso do padrão de emprego asiático (baixa remuneração, alta rotatividade e extensa jornada de trabalho). Em síntese, a desestruturação do mercado de trabalho avança tanto com a expansão dos empregos precários e sem regulação, que mina a capacidade de geração dos empregos de classe média, como pela manutenção do elevado desemprego, que fragiliza a trajetória das remunerações em virtude da intensa rotatividade dos trabalhadores ocupados. De outro lado, também se constata o fortalecimento da participação dos 40% de menor renda do trabalho. A melhora relativa do rendimento do estrato inferior na escala distributiva deve-se fundamentalmente aos ganhos obtidos em função dos avanços consagrados pela Constituição Federal de 1988 (equivalência do valor da aposentadoria ao salário mínimo, aposentadoria rural, LOAS entre outras medidas), da recuperação do valor real do salário mínimo e da ampliação das políticas de garantia de uma renda mínima. Essa situação indicativa da inegável melhora parece estar, todavia, circunscrita ao fenômeno da redistribuição fundamentalmente intersalarial. Isso porque o rendimento do trabalho capturado pelas pesquisas oficiais revela a sua queda em relação à renda nacional e, no seu interior, a maior diminuição do peso relativo do rendimento dos mais ricos. Em resumo, a parte da renda do conjunto dos verdadeiramente ricos afasta-se cada vez mais da condição do trabalho, para aliar-se a outras modalidades de renda, como aquelas provenientes da posse da propriedade (terra, ações, títulos financeiros, entre outras). De fato, verifica-se que, em 2005, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional foi de 39,1%, enquanto em 1980 era de 50%. Noutras palavras, a renda dos proprietários (juros, lucros, aluguéis de imóveis) cresceu mais rapidamente que a variação da renda nacional e, por conseqüência, do próprio rendimento do trabalho. Em conformidade com a nova série do Sistema de Contas Nacionais do IBGE para o período recente, constata-se a persistência da trajetória de agravamento do processo de distribuição funcional da renda no país. No fundamental, o crescimento relativo na renda dos proprietários encontra respaldo no avanço dos detentores da riqueza financeira. Assim, o Brasil convive com uma experiência de distribuição paradoxal da renda. Simultaneamente à melhor redistribuição no interior da renda do trabalho, nota-se justamente a continuidade na compressão do peso relativo do rendimento do trabalho na renda nacional, influenciada pelo maior crescimento da riqueza dos proprietários. Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade de Campinas. Escreve mensalmente, às quintas-feiras, no jornal Valor Econômico.

Clique para baixar o arquivo: pardoxo_distributivo_no_brasil.pdf!
[Voltar ao topo]