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Tentando explicar o inexplicável

[Tentando explicar o inexplicável]

Paulo Passarinho é economista e conselheiro do CORECON-RJ

Paulo PassarinhoO mês de abril nos trouxe a marca dos cem primeiros dias do governo de Dilma Rousseff, período simbólico e que muitos consideram suficiente para que tendências e ações desenvolvidas por um novo governante já possam ser avaliadas com uma menor margem de incertezas ou equívocos. Foi também o quarto mês de governo da primeira presidente de nossa curta e pobre história republicana.

 

Inicialmente, cabe lembrar, tanto à direita quanto à esquerda observamos avaliações que procuravam mostrar otimismo no início do governo, especialmente em sua inevitável comparação com Lula.

 

Para setores da esquerda, destacava-se a lembrança do passado de Dilma, seu suposto maior comprometimento com uma ideologia transformadora da sociedade e a sua própria seriedade técnica e política, em comparação com o seu antecessor.

Para a direita, por outro lado, a sobriedade e discrição de Dilma no exercício do seu cargo ? além das suas reiteradas declarações de manutenção da "seriedade fiscal e do vigilante combate à inflação" ? eram sinais mais do que suficientes para agradar aos gostos mais conservadores.

 

A própria presidente, contudo, com certeza, melhor definia o que de fato devemos esperar: "um governo de continuidade e mudança". Continuidade em relação a Lula, é lógico, e mudança decorrente da própria evolução dos fatos, da alteração de situações conjunturais e das próprias particularidades da governante.

 

Entretanto, especialmente entre os otimistas pela esquerda, parece que o ditado que denuncia que muitas vezes "a esperança vence a experiência" foi esquecido.

 

Entre os economistas, por exemplo, a idéia de combinar o credo da "estabilidade financeira" ? tão cara aos mercados financeiros e de acordo com o que esse setor entende como estabilidade ? com políticas macroprudenciais, de natureza cambial e fiscal, levou a muitas análises que apontavam a possibilidade de avanços na política macroeconômica, com menos ênfase na utilização da taxa de juros e suas conseqüências sobre a valorização da taxa de câmbio.

 

Ledo engano.

 

Desde a posse de Dilma, em janeiro, o Banco Central em todas as reuniões realizadas pelo seu Comitê de Política Monetária (o Copom) elevou a taxa Selic, a taxa básica de juros. Foram três oportunidades, com elevações sucessivas da taxa Selic, em duas ocasiões (janeiro e março) com aumentos de 0,5% e agora, em abril, com 0,25 ponto percentual, fazendo com que a taxa básica de juros saísse de 10,75% para 12% ao ano. Mais grave: sempre com o equivocado e oportunista argumento do combate à inflação, e de acordo com explícitas pressões dos bancos, a última ata da reunião do Copom deixa clara a intenção de se manter uma trajetória ascendente da taxa de juros.

 

Ficou evidente, assim, que as chamadas medidas macroprudenciais na área fiscal e em relação ao câmbio foram apenas complementares à ênfase que continuamos a observar na política de elevação de juros.

 

E este é o ponto talvez essencial para decifrarmos o verdadeiro impasse em que nos encontramos. A política macroeconômica do Brasil, em suas linhas gerais, desde a crise do Real, em 1999, se mantém inalterada. Ela se baseia no tripé câmbio flutuante/superávit primário/metas inflacionárias. É evidente que, de acordo com as variadas conjunturas que temos atravessado, e não foram poucas ? é claro, afinal já se vão doze anos! ? diferentes medidas foram adotadas, de acordo com as peculiaridades de cada momento. Contudo, sem que houvesse, em nenhuma oportunidade, a mais leve ameaça ao modelo em curso, baseado na abertura financeira e produtiva do país.

 

O pacto político dominante, forjado no Brasil a partir do impeachment de Collor e do lançamento das bases do Plano Real, logo após o processo de conclusão da renegociação tardia da dívida externa do país, durante todos esses anos não sofreu alterações substantivas. A rigor, esse pacto político somente se ampliou e se fortaleceu. No curso do auge das privatizações, ainda no seu primeiro mandato, FHC trouxe para o seu interior os interesses dos Fundos de Pensão dos trabalhadores do setor estatal, instituições financeiramente estratégicas nas operações de entrega do patrimônio do Estado à gerência dos interesses privados. Mais tarde, o que assistimos, já no segundo mandato de FHC e principalmente no próprio governo de Lula, foi o setor exportador contemplado como protagonista do bloco hegemônico, agora partidariamente fortalecido pelos antigos partidos de esquerda, tendo à frente o próprio PT, partido cada vez mais de Lula, e sem nenhum compromisso com suas antigas bandeiras.

 

E no governo Lula fez-se mais: houve a espetacular cooptação de dirigentes de movimentos sociais, ong's e professores acadêmicos, todos agora também beneficiados por generosas verbas das mais diferenciadas naturezas. O ex-malfadado Estado agora era descoberto na sua virtude de financiador a ótimos projetos, claro, que passavam a integrar um Brasil para todos...

 

Esse é o verdadeiro nó górdio a ser desatado: como superar esse modelo? Como derrotá-lo? Como enfrentar o pacto político dominante e fortalecido agora por partidos de bases populares, outrora de combate ao modelo dos bancos e transnacionais?

Recentemente, tivemos duas patéticas oportunidades de observar a complexidade do dilema que vivemos. Primeiramente, o próprio ministro da Fazenda tendo a coragem de admitir a sua impotência para enfrentar simultaneamente a atual pressão inflacionária e o processo renitente de sobrevalorização do Real. Incapacidade individual? De forma alguma. O ministro sabe que o problema é o modelo econômico politicamente assumido. No quadro de elevada liquidez internacional e com as condições de operação financeira e produtiva para os capitais externos que o seu governo permite, é de fato extremamente difícil evitar a entrada de todo o tipo de recurso especulativo no país.

 

A segunda oportunidade ? de forma inteiramente vexatória a sua própria figura e ao nosso país ? se deu na recente viagem de Dilma Rousseff à China, quando a presidente se manifestou a respeito do nosso problema cambial. Na frente dos chineses, se referindo ao nosso malfadado câmbio flutuante, essa opção de regime cambial foi apresentada como algo imutável ou natural, como se não fora dela mesma, a presidente da República, a maior responsabilidade pela situação que vivemos. A conhecida racionalidade chinesa não deve ter entendido muito bem o que se passava..., especialmente porque a própria Dilma se queixava ? logo para os chineses! ? da sobrevalorização do Real e da perda de competitividade das exportações brasileiras.

 

Adotar rígidos controles sobre os fluxos cambiais; reduzir as taxas de juros reais; liberar o orçamento público da ditadura dos superávits primários; enfrentar o desafio de uma verdadeira reforma tributária, com base nos princípios da progressividade e da justiça tributária; viabilizar recursos orçamentários para a tão decantada prioridade à educação pública de qualidade; ou desenvolver uma política industrial voltada à geração de empregos de qualidade, amparada em um processo de inovação tecnológica e científica, sob controle de empresas brasileiras, são metas não somente possíveis, mas absolutamente necessárias ao nosso país.

 

Mas, para tanto, há de se derrotar o modelo econômico vigente e o pacto político que o sustenta.

 

Mas, onde se encontram as forças políticas capazes de levarem à frente uma luta política dessa natureza?

 

Ao contrário, o que observamos é o fortalecimento, ainda maior, do atual pacto político hegemônico. A escandalosa articulação do "novo" PSD ? para muitos, o partido do Serra e do DEM que quer se acertar com a base governista ? é a prova cabal desse incrível fortalecimento do que, devemos nos lembrar, foi, no passado, a experiência de articulação do chamado Centrão, em pleno processo constituinte de 1987/88.

 

A dramática diferença é que, naquela ocasião, a liderança desse grupo era de um deputado paulista, Roberto Cardoso Alves, aquele do "é dando que se recebe". Hoje, o lema é o mesmo. Mas, as iniciativas desse bloco passam pelo Palácio do Planalto e pela cúpula do partido de Lula, com a sua própria benção.

 

É a gerência desse pacto que nos leva à aventura da realização da Copa a das Olimpíadas, sob a ditadura das exigências de investimentos (e inúmeras irregularidades) que não respondem às nossas necessidades; é isso que explica a açodada idéia da concessão de aeroportos rentáveis à iniciativa privada; é isso que explica a manutenção dos juros altos e do arrocho fiscal que deprimem o investimento público; é isso que explica o inexplicável.

04/05/2011

Fonte: http://socialismo.org.br/portal/economia-e-infra-estrutura/101-artigo/2014-tentando-explicar-o-inexplicavel
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