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Viva a nossa africanidade!

[Viva a nossa africanidade!]

?Menino ainda, com ascendentes nordestinos negros e indígenas, a pressão social era para que meu cabelo crespo ficasse ?bom? (!?), isto é, liso. Haja ?Gumex?, uma espécie de fixador... Custei a me libertar dessa imposição de um padrão europeu, branco, ?bonito?. Meu cabelo testemunhava minha origem, e a cor da pele confirmava.  Mas a sociedade ainda cheia dos estereótipos do ?belo?, do ?civilizado?, franzia o cenho para essa condição natural.  Só me constituí como pessoa quando, graças a muitos, consegui me descobrir como sou, e ter orgulho de ser o que sou, no corpo e na aflita e esperançosa alma de latino-americano.

Somos também 4 séculos de escravidão. ?Em troca do seu trabalho os escravos recebiam três ?pês?: pau, pano e pão?, lembrei, com Marcus Venício Ribeiro e Lúcia Carpi, no livro do História da Sociedade Brasileira. Continuamos lembrando a saga desses povos expatriados que tornaram-se a nossa gente: ?os negros escravizados reagiam a tantos tormentos suicidando-se, evitando a reprodução, assassinando feitores, capitães-do-mato, proprietários. Em seu cultos os escravos resistiam, simbolicamente, à dominação. Os cultos afros eram, e continuam a ser, um ritual de liberdade, protesto, reação à opressão do Deus dos brancos. Rezar, batucar, dançar e cantar eram maneiras de aliviar a asfixia da escravidão. A resistência acontecia também no real ? na fuga das fazendas e na formação de quilombos, aldeias de negros foragidos que tentavam reconstituir nas matas brasileiras sua vida africana. Cada quilombo era uma ?Angola janga?, isto é, uma pequena Angola.

Durante todo o período colonial, formaram-se quilombos em muitas partes do território, como no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Mato Grosso, na Bahia, em Pernambuco. Sem dúvida, mais conhecido foi o Quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga, no atual Estado de Alagoas. Os mocambos ? grupos de casebres cobertos com folhas de palmeira ? estendiam-se por 27.000 Km2 e seus milhares de habitantes (cerca de 50.000 em 1670) cultivavam principalmente milho, além de feijão, batata-doce, mandioca, banana e cana-de-açúcar.

Nessa ?Angola janga? não viveram apenas negros escravos: brancos (talvez foragidos da justiça colonialista), mulatos livres e índios integraram-se nessa comunidade onde quem chegasse por esforço próprio era considerado livre. Os trazidos à força só alcançariam a alforria quando levassem para o mocambo algum negro cativo. Palmares desenvolveu-se tanto que seus habitantes até iniciaram um pequeno comércio com aldeias próximas, ligadas à colonização portuguesa.

Esse mundo era uma ameaça para a ordem colonial-escravagista: ?O quilombo era um constate chamamento, um estímulo, uma bandeira para os escravos das vizinhanças ? um apelo à rebelião, à fuga para o mato, à luta pela liberdade. As guerras na serra da Barriga e as façanhas dos quilombolas assumiram caráter de lenda, alguma coisa que ultrapassava os limites da força e do engenho humanos. Os negros de fora do quilombo consideravam ?imortal? o chefe Zumbi ? a flama da resistência contra as incursões dos brancos?. (Edson Carneiro, 1996, p. 5).

A repressão aos quilombos era uma necessidade para os senhores e para a metrópole. O século XVII é marcado pela guerra contra Palmares, movida por holandeses ? quando ocupam o Nordeste ? e por defensores da colonização lusa, financiados pelo rei ou não. A destruição final de Palmares, com a queda do mocambo principal, a Cerca Real dos Macacos, só ocorre em 1695. Chefiava a força dos ?civilizadores? o bandeirante Domingos Jorge Velho.

Relembrar essa grande epopéia histórica é fundamental para celebrar condignamente a Consciência Negra. Onde há opressão, há resistência!  Na esteira da luta simbolizada por Zumbi, devemos também destacar o centenário, neste 22 de novembro, do início da dura e gloriosa luta dos marinheiros ? na sua maioria negros ? contra os castigos corporais na Armada Brasileira, já em plena República. À frente o ?Almirante Negro?, João Cândido, cantado por Aldir Blanc e João Bosco como o ?mestre sala dos mares?: glória a todas as lutas inglórias!

A Consciência Negra, o crescente reconhecimento da nossa africanidade fez com que, afinal, o líder desse povo combatente por sua própria dignidade não tivesse mais ?por monumento as pedras pisadas do cais?. Na Praça XV de Novembro, no Rio de Janeiro, às margens das águas ainda sujas da baía de Guanabara, lá está João Cândido, altaneiro. Como um Zumbi, um Ganga Zumba, ele nos lembra, como Agostinho Neto, primeiro presidente da República Popular de Angola, que ?minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo, mereço meu pedaço de pão?.?

 

Sala das Sessões, 18 de novembro de 2010.

 

Chico Alencar
Deputado Federal, PSOL/RJ

Fonte: Boletim Eletrônico Marcelo Freixo
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